O artigo chama-se: Uma questão de dragões - de autoria do economista, professor João César das Neves. Vale a pena ler, é sobre conspirações e dragões.
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Nunca mandes saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti." Ernest Hemingway colocou a sua descrição de 1940 da guerra de Espanha debaixo deste verso do poeta seiscentista John Donne. Roland Joffé, numa abordagem ao mesmo tema, fala agora "daquele lugar, dentro de nós, onde encontrarás dragões".
Os horrores da perseguição republicana à Igreja e subsequente guerra civil nos anos 1930 são ambiente apropriado para testar valores em condições extremas. O filme There be Dragons (Encontrarás Dragões, 2011) fá-lo através de dois amigos de infância que seguem caminhos opostos. Na abominação, destaca-se a firme aposta de um deles numa linha de amor, compreensão e misericórdia, até pelo intolerável. O filme brilha pelo retrato de S. Josemaría Escrivá e da sua insólita decisão de seguir a pessoa de Cristo num clima tão adverso. E pelos frutos que daí saem: "Quando perdoamos libertamos sempre alguém: nós próprios."
O belíssimo e profundo enredo valeria por si, com qualquer protagonista. Mas deve sublinhar-se a coragem do autor/realizador em escolher este em particular. O Opus Dei está bem estabelecida no imaginário contemporâneo, mas como encarnação extrema do clericalismo mais sinistro. Joffé não entra em apologéticas. Limita-se a retratar-lhe as origens, dando pistas preciosas para a compreensão da sua natureza. Esta "obra de Deus" nasceu no calvário.
A questão religiosa da nossa Primeira República foi fenómeno paralelo, muito menos cruel. Esse é o tema de O Sol Bailou ao Meio-Dia. A Criação de Fátima, de Luís Filipe Torgal (Tinta da China, 2011), versão revista de uma tese já editada em 2002. O volume trata a história dos primórdios do culto em Fátima e das polémicas que o rodearam. Apesar de hostil, é objectivo, rigoroso e fundamentado e traça um quadro sério e sólido dessa realidade.
O livro pretende demonstrar duas teses que não consegue. Primeiro que "a exposição dos ditos acontecimentos, ocorridos entre Maio e Outubro de 1917, foi desde então sucessivamente reformulada pelos inquiridores e pelos cronistas católicos. (...) A nova e mais elaborada história de Fátima que hoje conhecemos (...) foi, por conseguinte, construída a posteriori pelos historiógrafos católicos e sustentada pela hierarquia da Igreja" (p. 20-21). Leitura atenta do texto, aliás fundamentado em documentos publicados em cuidadosa edição crítica do Santuário, não permite vislumbrar tal manipulação.
A segunda tese é que "foi a Igreja (e/ou certos sectores a ela ligados) que impôs Fátima" (p.20), aproveitando-a para os seus propósitos. Segundo o autor, a Igreja "evoluiu de uma atitude de expectativa prudente (entre Julho e Setembro de 1917), para uma postura de promoção comedida (desde Outubro de 1917) e, mais tarde (sobretudo a partir de 1922), para a apologia evidente das aparições" (p. 21). Seria razoável esperar outra coisa? Era lógica ou até possível a "absoluta imparcialidade" (p. 95) que o livro parece preferir? Não foi aquela evolução que o cardeal Cerejeira retratou ao dizer "foi Fátima que se impôs à Igreja"?
Apesar disso e alguns erros pontuais, o livro fornece um relato rigoroso e informativo. O que mais ressalta é a fragilidade dos argumentos dos críticos de Fátima. Os anticlericais, sem o menor interesse pelos factos, limitam-se a opor-se por razões ideológicas: o que quer que aconteça, aparições e milagres são impossíveis. O mais divertido é chamarem a si mesmos "livre-pensadores".
Outro aspecto curioso que o livro manifesta é o desprezo que os intelectuais têm pelo povo, em geral, e as mulheres em particular. Afirmando-se democratas e liberais, acusam sempre as massas populares de boçais e supersticiosas, simplesmente por não seguirem os seus dogmas positivistas que têm de ser verdadeiros.
Em 2003 o americano Dan Brown quis envolver a Opus Dei, protagonista do filme de Joffé, numa história tonta de superstição, crime e morte n'O Código da Vinci. Há mais de 90 anos que muitos pretenderam fazer o mesmo com Fátima. É sem dúvida uma questão de dragões interiores.
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