quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O Fim da Política


"Quando a época glaciar estava a chegar ao fim, os Neandertais pensavam provavelmente que aqueles verões quentes europeus eram apenas uma excepção. Afinal, sempre os glaciares tinham sido presença constante na Europa. Não são Neandertais que hoje olham para as novidades que talvez venham a caracterizar o futuro, mas podem estar a cometer o mesmo erro de tomar o que é uma nova tendência por mera excepção.

Eis o mito contemporâneo: a liberdade e a democracia, tal como são concebidos na Europa e nos Estados Unidos, são direitos fundamentais, e a vida humana não pode florescer adequadamente sem eles. E eis o que os intelectuais Neandertais considerariam meras excepções: Singapura, China, Rússia, Emiratos Árabes Unidos, Índia… e até o Reino Unido e os EUA. Em todos estes casos, a liberdade e a democracia têm sido reconfiguradas e fortemente restringidas, em nome da produção da riqueza, nos primeiros casos, e da segurança, nos dois últimos. E os povos desses países não se queixam. Alguns intelectuais desses países queixam-se, mas não a generalidade das pessoas.

Pensar que a liberdade e os processos democráticos são fins em si é talvez a grande ilusão contemporânea, ilusão que bate na parede inamovível da mentalidade pragmática e sem ideologias da generalidade da população dos países hoje mais ricos. A generalidade da população destes países não participa no processo democrático — nem fazem uma coisa tão simples como votar, quanto mais associar-se aos partidos políticos ou fazer novos partidos políticos, ou participar nas instituições públicas apartidárias. A generalidade da população destes países não quer saber da política.

Não dizemos que um homem que não revela interesse pela política é um homem que nada tem a ver com a vida alheia; dizemos que nada tem a ver com a vida,” escreveu Tucídides — e poderá com estas palavras ter sintetizado a grande ilusão humana que agora está a ser refutada pela história, a ilusão de que todo o ser humano adequadamente formado tem interesse na vida pública. Afinal, “vida privada” até quer originalmente dizer vida de privação, privada de algo importante. A ideia iluminista era que as populações europeias só não se interessavam pela política porque estavam brutalizadas pela ignorância e pela pobreza; dadas boas condições de vida e instrução, toda a gente seria, se não um Aristóteles, pelo menos um parlamentar em potência.

A ideia veio a morrer de morte natural, mas o cadáver caminha. A participação na vida pública não aumentou na Europa, apesar de as pessoas terem agora a riqueza, o tempo e a instrução para o fazer. Não o fazem, porque não estão interessadas em fazê-lo. Preferem ver cinema ou futebol ou televisão, fazer compras, passar férias e fins-de-semana na praia — enfim, mil coisas, mas não perder tempo com a vida pública. O cadáver caminha ainda porque não se pára de ouvir falar na importância da participação na vida pública, a que se chama cidadania. Impõe-se isso como valor nas escolas e na televisão. E não funciona. Nada muda. O acto mais simples de cidadania é votar, mas nem isso a generalidade das pessoas fazem na Europa ou nos EUA.

Mas fazem-no em regimes populistas, manifestando-se aos milhares nas ruas de Hugo Chávez. Fazem-no pela mesma razão que o faziam na Europa das convulsões sociais, a Europa da pobreza e da multidão de ignorantes: porque viam na política uma luz, uma esperança, para uma vida melhor. Agora que têm uma vida melhor, a política, a vida pública, perdeu o interesse. (...)"

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Por Disidério Murcho

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