Férias de Natal de Somerset Maugham, para além do título parecer adequado para esta época festiva, escolhi pelo debate final entre Charley e Simon, serem magistralmente elaborados, uma visão muito contestatária e acerbada acerca do que aparentemente nos representam os ideais da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, bem como, a própria Democracia e os Regimes Totalitários, também não escapam à análise.De uma forma muito abreviada, Férias de Natal, está longe de ser uma obra-prima de Maugham, não é das mais conhecidas e notáveis, mas retrata sublimemente a realidade sócio-político de uma Europa que vive a tensão entre as duas guerras mundiais. Narra a primeira viagem de Charley, sem a companhia dos familiares na época do Natal, oferecida pelo pai, é resultante da escolha de Charley, que troca suas pretensões artísticas pela promessa de vir a substituí-lo no cargo que ocupa na empresa da família. Em Paris, Charley encontra o amigo Simon Fenimore, comunista violento, que trabalha como correspondente de um jornal inglês, e conhece uma princesa russa chamada Olga, num prostíbulo de luxo. O seu nome, na verdade, é Lídia, que, junto com a família, perdeu todos os bens durante a Revolução Russa de 1917. Finalmente, o jovem inglês conhece, através de Lídia e Simon, o ladrão de carros, traficante de drogas e assassino Roberto Berger, com quem Lídia se casa. Sendo confrontado com uma realidade tão distante da sua, Charley começa a questionar seus próprios valores. A viagem de poucos dias muda radicalmente a sua vivência., Como nos sempre habituou S. Maugham, faz-nos interrogar, sobre valores que nos parecem inquestionáveis, muitas vezes nos pareciam dogmas.
Revoluções
Diálogos de Simon com Charley:
“Charley tirou os recortes do bolso.- Pela leitura do teu artigo, julguei que tivesses uma certa simpatia por ele.-Simpatia, não. Achava-o interessante, justamente por ser um consumado patife, descarado e sem escrúpulos. Admirava a sua afoiteza. Em outras circunstâncias, poderia tornar-se um instrumento útil. Numa revolução, um homem com esse, que não recua diante de nada, cheio de coragem e despido de escrúpulos, pode ser precioso.
- Não o julgaria um instrumento digno de confiança.
- Não foi Danton quem disse que, numa revolução, é a escumalha da sociedade – os velhacos e os criminosos – que sobe à tona? É natural. Precisa-se deles para certo género de trabalho, e quando cumpriram a sua missão pode-se fazê-los voltar ao deu lugar.”
Encaixa na perfeição a citação de Thomas Carlyle (1795-1881) ensaísta, escritor, satirista e historiador escocês, as Revoluções são idealizadas por utópicos, realizadas por fanáticos e exploradas por patifes. Sempre foram e continuarão a sê-lo, adicionava a essa cambada dos patifes, os oportunistas.
“- Estudei a Revolução Francesa e a Comuna. Os russos fizeram o mesmo e aprenderam muito com elas, mas nós desfrutamos hoje a vantagem de podermos tirar proveito das lições que nos ensinaram os factos ulteriores. (…/...). Se tivermos um pouco de tino, saberemos emular como êxito dessa gente, evitando ao mesmo tempo os seus erros. A revolução de Bela Kun malogrou-se porque o povo tinha fome. A revolta do proletariado tornou relativamente simples fazer a revolução, mas era preciso dar de comer ao proletariado. É necessário haver organização, para que os meios de transporte sejam eficientes e o abastecimento farto. É esta, seja dito de passagem, a razão pela qual o poder, que o proletariado pensou empolgar ao fazer a revolução, deve sempre fugir-lhe e ir para as mãos de um pequeno grupo de condutores inteligentes. O povo é incapaz de governar-se. Os proletários são escravos, e escravos precisam de senhores.”
Azul
Diálogos de Simon com Charley:
“- A democracia é um sonho. É um ideal irrealizável com que o propagandista acena às massas, com se acena uma cenoura a um burro. O grande lema do século XIX, liberdade, igualdade, fraternidade, é pura patranha. Liberdade? A grande maioria dos homens não precisa de liberdade e não sabe que fazer com ela, quando a obtém. O seu dever e o seu gosto é servir. Consegue assim a segurança, que é a sua maior necessidade. Está assente há muito tempo que a única liberdade que vale alguma coisa é a liberdade de fazer o que está certo; ora, isso é determinado pela força. É uma ideia engendrada pela opinião pública e prescrita pela lei; mas a opinião pública é criada por aqueles que tem poder para fazer aceitar o seu ponto de vista, e a única sanção da lei é a força em que ela se apoia. (…/…)”
Opinião pública, realmente é uma coisa que sempre me exacerbou, ainda mais com essa invasão de canais televisivos, pior que marcas de sabonetes, e com isso veio os canais noticiosos, com as suas respectivas opiniões públicas, acabando no paradoxo de Galleno, os meios de informação desinformam.
Vermelho
Diálogos de Simon com Charley:
Fraternidade? Que entendes por fraternidade?
Charley reflectiu um instante.
- Ora não sei. Suponho ser o sentimento de que todos nós formamos uma grande família e estamos aqui na Terra por tão pouco tempo que é melhor andarmos bem uns com os outros.
- Mais alguma coisa?
- Só isto: que a vida é uma empreitada difícil, e a tornaríamos provavelmente mais fácil para todos se fôssemos bons e honestos uns para os outros. Os homens têm defeitos de sobra, mas também têm muitas qualidades boas. Quanto mais conhecemos as pessoas mais gostamos delas. Isto faz supor que será bastante facilitar o caminho aos outros para que eles venham ao nosso encontro.
- Balelas, meu caro, balelas. És um simplório sentimental. Em primeiro lugar, é falso que as pessoas lucrem com ser mais bem conhecidas. Eis a razão pela qual não deveríamos ter senão conhecidos, e nunca fazer amigos. Um conhecido só nos mostra as suas qualidades mais amáveis. É cortês e solícito, oculta os seus defeitos sob a máscara das convenções sociais. Mas fazer-te tão intimo ele que o vejas tirar a máscara, procura conhecê-lo tão bem que ele já não se dê ao trabalho de fingir, e descobrirás um ente tão cheio de baixeza, tão vulgar, tão fraco e tão corrupto que ficarás horrorizado se não houveres adivinhado antes que essa era a sua natureza, e seria tão absurdo condená-lo como seria condenar o lobo porque pilha os rebanhos ou a serpente porque pica. Porque o egoísmo é a essência do homem. É, ao mesmo tempo, a sal força, e a sua fraqueza. Oh! Aprendi a conhecer os homens nestes dois anos que vivi no meio jornalístico. Vãos, mesquinhos, avaros, sem escrúpulos, bifrontes e abjectos traem-se uns aos outros, não já por interesse mas por pura maldade. Não há estratagema torpe a que não se baixem para intrigar um rival. Não há humilhação que não aceitem para obter um título ou uma comenda. E isto não é só entre políticos; também entre advogados, médicos, negociantes, artistas, homens de letras. E que ânsia de publicidade! Fazem-se obsequiosos diante de um jornalista de meia tigela, adulam-no, para serem festejados pela Imprensa. Os ricos não vacilam em usar artimanhas repugnantes para ganhar algumas libras de que não precisam. Honestidade! Honestidade política, honestidade comercial… a única coisa que lhes importa é aquilo que poderão fazer impunemente; a única coisa que os detém é o medo. São poltrões. E os protestos que fazem, as bombásticas intrujices que lhes escorrem dos lábios, as despudoradas patranhas que impingem a si próprios! Acredita no que te dig: não se podem conservar muitas ilusões depois de fazer o trabalho que tenho feito desde que deixei Cambridge. Os homens são vis, cobardes e hipócritas. Detesto-os.
- Não tens nenhuma piedade deles?
- Piedade? A piedade é para as mulheres. A piedade é aquilo que o mendigo nos implora porque não tem coragem, energia nem tino para viver decentemente. A piedade é a lisonja por que suspira o falhado, para poder conservar a estima própria. A piedade é o tostão falso que os prósperos dispensam aos desfavorecidos da fortuna para poderem gozar a sua prosperidade com a consciência mais tranquila."
Branco
Diálogos de Simon com Charley:
“- Igualdade? A igualdade é o maior absurdo que tem confundido a inteligência do homem. Como se os homens fossem iguais ou pudessem sê-lo. Fala-se em oportunidades iguais para todos. De que serve isso aos homens, quando não podem tirar proveito delas? Eles nascem desiguais, diferentes no carácter, na vitalidade, no cérebro; já não paridade d circunstâncias que possa contrabalançar essas diferenças. A grande maioria é de uma estupidez opaca. São crédulos, superficiais e fúteis. Para que dar-lhes as mesmas oportunidades que aos homens de carácter, inteligência, acção e força? …/…”
Democracia
Diálogos de Simon com Charley:
“E é justamente essa desigualdade natural dos homens que solapa os alicerces da democracia. Que farsa estúpida é governar um pais pela contagem de milhões de cabeças ocas! Em primeiro lugar, eles não o que lhes convém, e em segundo, não têm capacidade para obter o que querem. A que se reduz a democracia? À força presuasiva de algumas frases inventadas por políticos ardilosos que visam o seu próprio proveito. Uma democracia é governada por palavras, e o orador raramente tem miolos na cabeça, ou, se os tem, falta-lhe tempo para fazer uso deles, pois que lhe é mister empregar toda sua energia em aliciar os imbecis de cujos votos precisa.”
Ainda as Revoluções
Diálogos de Simon com Charley:
“(…/…) Mas a turba, que é o instrumento dos condutores da revolução, não é um ser racional e sim instintivo, acessível à sugestão hipnótica, e pode-se movê-la ao furor por meio de frases. Ela é uma entidade, e como tal indiferente à morte daqueles que tombaram nas suas fileiras. Não conhece piedade nem clemência. Exulta na destruição porque com ela adquire consciência da sua força.
- Não hás-de negar, suponho, que isso implica o sacrifício de milhares de pessoas inofensivas e o subvertimento de instituições que levaram séculos a estabelecer-se.
- Tem que haver subvertimentos numa revolução, e tem que haver sacrifícios de vidas. Engels disse há muitos anos que devemos contar com a resistência das classes possuidoras, por todos os meios ao seu alcance. É uma luta de morte. A democracia conferiu uma importância absurda à via humana. Moralmente, o homem nada vale, e a sua supressão não constitui uma perda. Biologicamente, é desdenháveis. Não há razão para que matar um homem nos pareça mais monstruoso do que esmagar uma mosca.”
Comunismo
Diálogos de Simon com Charley
“O comunismo? Quem falou em comunismo? Toda a gente sabe hoje que o comunismo naufragou. Foi o sonho de idealistas sem senso prático, que tudo ignoravam das realidades da vida. O comunismo é o engodo que se estende às classes trabalhadoras para excitá-las à revolta, assim com o grito da liberdade e igualdade é o rebate com que se excitam à ousadia . Através da história houve sempre exploradores e explorados. Sempre os haverá. E isso é justo, pois os homens, na sua maioria esmagadora, são destinados pela Natureza ao papel de escravos. São incapazes e se dirigirem e, para seu próprio bem, necessitam de senhores.
A afirmação parece-me um tanto surpreendente.
- Não é minha, meu velho (…)É de Platão (…) Qual foi o resultado das revoluções a que assistimos na nossa vida’ Os povos não perderam os seus senhores, apenas os trocaram, e em parte alguma é a autoridade exercida com tão férrea dureza como sob o regime comunista.
- O povo, então, é ludibriado?
- Naturalmente. E por que não o seria? Merece sê-lo, pois é composto de néscios. Afinal, que importa isso? O lucro que lhe advém do facto de ser logrado é positivo. Já não se exige dele que pense por si mesmo. Mostra-se-lhe o que deve fazer, e enquanto obdecer terá segurança por que sempre ansiou. Os ditadores da nossa época cometeram erros, e esses erros são –nos úteis. Esqueceram o princípio de Maquiavel, segundo o qual se pode escravizar politicamente o povo, contanto que não se lhe toque na vida privada. Eu daria ao povo a ilusão da liberdade concedendo-lhe a maior independência pessoal compatível com a segurança do Estado. Socializaria a industria tão amplamente quanto o permitirem as características peculiares do animal humano, dando-lhe assim a ilusão de igualdade. E, como todos seriam irmãos debaixo do mesmo jugo, teriam também a ilusão da fraternidade. Lembra-te de que um ditador pode fazer em benefício do povo uma porção de coiss que são vedadas à democracia, porque esta tem de levar em conta os interesses constituídos, os ciúmes e as ambições pessoais. Ele tem assim uma oportunidade excepcional para suavizar a sorte das massas.”
Ainda sobre Ditadores
Diálogos de Simon com Charley:
“(…) Nas actuais condições, um ditador que dispõe de aviões para lançar bombas e de carros blindados para varrer amotinados á metralha pode sufocar qualquer revolta. As classes possuidoras poderiam fazer o mesmo, e nenhuma revolução teria êxito. Mas os acontecimentos demonstraram que ela não têm ãnimo para isso. Matam cem homens, mil, até, mas depois assustam-se, querem transigir, propõem concessões, mas é muito tarde para concessões e transigências, e são varridas. Ma so povo aceita o senhor porque sabe que este é melhor e mais sábio do que ele.
- Por que há-de ser melhor e mais sábio?
- Porque é mais forte. Como tem o poder nas mãos, o que declara estar bem, está bem, e o que afirma ser bom, é bom.”
“(…)Um ditador deve exercer uma espécie de prestígio mítico, de modo a provocar nos adeptos um fanatismo religioso. Deve ser dotado de uma força magnética que lhes faça considerar um privilégio o dar a vida por ele.”
“(…) Lembras-te de que disse Lincoln: “Pode-se lograr parte do povo durante todo o tempo e todo o povo durante algum tempo, mas não se pode lograr todo o povo durante todo o tempo” Mas é precisamente isto o que um ditador tem de fazer: lograr todo o povo durante todo o tempo, e só há um meio de consegui-lo: lograr-se a si próprio. Nenhum dos ditadores possui um cérebro lúcido e lógico. Têm dinamismo, força, magnetismo, sedução mas examinem-se-lhe as palavras com atenção e ver-se á que a sua inteligência é medíocre. Sabe agir porque é conduzido pelo instinto, mas logo que se põe a pensar perturba-se”